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Felipe Scovino.

Diatropia: Na fronteira entre o presente e o futuro - 2016.

O número de vezes em que ouvimos ou lemos sobre a morte da pintura é tão grande quanto a própria capacidade dela se reinventar. Os exemplos desse estado pulsante de redescoberta, estabelecendo novas conexões, são vários para a pintura. Os meios de experimentação que em muitos casos substituíram o pincel pelo corpo ou atuaram em conjunto, um como extensão do outro, ou ainda a própria matéria da pintura tendo o corpo como símbolo, está explícito em um enorme arco que variou, para nos atermos no pós-guerra, desde as action paintings de Pollock, passando pelas Antropometrias de Yves Klein e os projéteis recheados com pigmentos de Niki Saint Phalle...

 ...Este conciso histórico constitui-se como base de estudos e perguntas para a série Diatropria de Stella Mariz. Percebam que essa série não se configura como uma pintura performática ou algo do gênero mas como uma obra que abrange questões relativas a pintura, corpo e memória.

 

Esta série, portanto, percorre divagações sobre o próprio estado (ampliado) da pintura. Stella produz pintura – e este é um dado importante - sem pincel ou tinta e utiliza a costura do tecido e a fotografia como meios para se discutir uma questão do plano. É o dado da manufatura, de construir o plano passo a passo, em um tempo que percorre de forma distinta ao cronológico, de pouco a pouco dar forma pictórica ao tecido estampado com fotos das ruínas da cidade portuguesa de Marialva e ruinas brasileiras, e preenchido com manta acrílica. Stella “tece a pintura”, transmite forma e volume à pintura sem fazer uso do mais identitário dela, o pincel. E mais do que isso, essa pintura reflete a paisagem. No diálogo entre tempos e lugares, tendo até agora Marialva de um lado e o Rio de Janeiro, Buzios e Pampulha do outro, assistimos não só a ligação histórica e permeada de memórias e significados entre Brasil e Portugal mas a um estado de impermanência entre os dois lugares. A ruína constitui-se como a materialidade do passado, a persistência da memória e da cultura daquele lugar em meio ao tempo presente. Comporta-se como um objeto deslocado do tempo linear. A ruína carrega uma força histórica de conhecimento ao acolher origens que se tornam perdidas ou fora de lugar na marcha do tempo. Para Walter Benjamin, essa possibilidade de romper com o tempo progressivo e impedir o ritmo da natureza também se expressa no caráter destrutivo da ruína. E portanto como esse caráter se comporta no seu diálogo (ou confronto?) com o presente? Parece-me ser uma pergunta levantada pela artista. No momento em que refletimos, especialmente nas grandes cidades brasileiras, em meios a discussão ambientais, políticas e sociais, de que maneira o espaço público está sendo transformado e para quem ele está sendo construído, o aparecimento da imagem da ruína é significativo. Não estou querendo afirmar que o futuro é tenebroso e que a sociedade encontrará o seu fim - pelo menos mais cedo do que imaginamos – mas percorro outro norte: a ruína é o símbolo de como podemos escavar o nosso futuro, isto é, realizar uma densa atividade arqueológica, compreender o nosso passado, revolver nossa história, e elaborar sobre o que está por vir, sobre as atitudes e reflexões a serem tomadas. É sintomático o fato de que memória/passado (ruína) e presente (a paisagem contemporânea da cidade) se fazem na medida simbólica de um corpo. Pois fundamentalmente estão compreendidos naquele espaço da tela uma densidade e volume, por conta da manta, que fazem com que o plano almeje o espaço. A ruína não é definitivamente a simbologia do passado, aqui entendido como algo de outrora, mas corpo. Não apenas por conta do volume mas fundamentalmente pelo “rio vermelho” que escorre pelas veias/entranhas/limites dos seus muros e superfícies. As ruínas estufam, ganham projeção sobre plano, desejam contaminar o presente, e é curioso nesse sentido, porque em determinados momentos é através das janelas dessas estruturas sólidas que também observamos o presente. A ruína é a janela, elemento tão comprometido com a história da pintura, e que, remetendo às primeiras linhas desse ensaio, tão notavelmente também se refaz no pensamento contemporâneo sobre a produção pictórica.

 

Percebam que na série em questão as elucubrações estão sendo produzidas e refletidas simultaneamente, podendo-se afirmar o seguinte: Diatropia não possui um tempo definido, situa-se num vácuo temporal porque a ela interessa pensar o presente e o passado não como situações opostas mas como espelhos: refletir a memória é pensar o presente, seja no jogo da vida, seja no âmbito da arte.

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