Shannon Botelho.
Denso e Sútil - 2025
Dois adjetivos aparentemente contraditórios nomeiam a exposição que Stella Mariz apresenta no Centro Cultural Correios. À primeira vista, “denso” e “sutil” podem soar literais ou até mesmo inadequados para qualifi car a produção da artista. No entanto, é justamente na tensão entre esses extremos que reside a essência de seu trabalho. A escultura, meio de predileção de Stella, é o eixo a partir do qual outras linguagens orbitam, ampliando sua poética com delicadeza e profundidade.
O interesse pela tridimensionalidade atravessa toda a trajetória de Stella Mariz. Desde sua aproximação inicial com as Artes Visuais, ela escolheu um caminho ancorado na manualidade, na construção paciente das formas. Médica de formação, seu olhar atento ao corpo e aos gestos reverbera no modo como compõe suas obras – seja nas suturas que encerram suas foto-pinturas, seja nos bronzes que evocam a presença humana com força quase ritual.
Stella reúne em Denso e Sutil uma síntese sensível de sua pesquisa e apresenta um recorte de obras signifi cativas de sua produção, que se estende pela escultura, pintura, fotografi a, costura, bordado e videoinstalação – esta última ausente na mostra. Três séries compõem a narrativa curatorial revelando conceitos que movem sua poética para o futuro: deslizamentos, torções e sobreposições.
Logo na entrada, dois trabalhos da série mais recente abrem a exposição. Em seguida, o visitante encontra a série de foto-pinturas em alto-relevo, produzidas em uma viagem a Portugal. Em 2014, ao visitar o Castelo do Marquês de Marialva, Stella fotografou obsessivamente suas ruínas, guiada por um impulso singular. De volta ao Brasil, ao investigar a história do personagem, ela descobre conexões profundas com a formação do sistema artístico brasileiro no século XIX. A partir daí, confere corpo às imagens, transformando planos fotográfi cos em volumes que fl ertam com o escultórico. Ao espessar as camadas, ao sobrepor superfícies, Stella rompe a bidimensionalidade da fotografi a, criando uma zona ambígua, quase tátil, onde a imagem se desestabiliza e nos convoca ao estranhamento.
Há, também, um elemento recorrente e marcante: as faixas vermelhas. Presentes em diferentes fases da sua produção, elas estruturam as composições, conferem solenidade, e trazem à tona um drama visual que remete tanto ao barroco quanto às reverberações contemporâneas desse estilo – como na pintura matérica de Anselm Kiefer. Nos bronzes, essas faixas parecem encontrar seu destino fi nal: a materialidade pura da cor, solidifi cada em gesto.
Nos trabalhos mais recentes, reunidos na série Recortes, a artista revê seus próprios símbolos. As árvores que antes habitavam simbolicamente as foto-pinturas – evocando as oliveiras da memória afetiva – agora emergem como entidades autônomas, frutos de uma fabulação plástica. Essas obras condensam deslizamentos, torções e sobreposições: procedimentos que são, também, marcas de resistência e reinvenção. Nelas, pintura, desenho e escultura se entrelaçam como recursos de expressão, dando forma à subjetividade e à potência do gesto. O suporte, papel, adquire inusitada densidade ao ser pressionado, raspado, gravado. O branco que vemos não é pigmento, mas ausência: o traço impresso pelo atrito, o vestígio da ação. O contraste entre a delicadeza do material e a força do registro dá origem a composições viscerais, que apontam novos caminhos para a poética da artista.
Denso e Sutil é, afi nal, um modo de fazer e de pensar. Através das obras de Stella Mariz, compreendemos seus interesses, sua escuta interna e o modo particular com que transforma matéria em sentido. Entre a rigidez do bronze e a leveza do papel, entre a precisão do corte e a intuição do gesto, emerge um campo de tensões onde olhar e pensamento são continuamente provocados. Das paisagens imaginadas à objetividade das formas naturais, a ambivalência se revela como convite: uma dança entre presença e mistério, como se as obras sussurrassem para que jamais desviássemos o olhar de seus enigmas.
Shannon Botelho
2025